Músicas "cristãs" são estranhas

 

    É uma terça-feira. Eu ponho meus fones, desbloqueio meu celular e abro o Spotify pra realizar meu ritual semanal de escutar minha playlist Descobertas da Semana. Logo que eu aperto o play e a playlist me dá a primeira faixa, eu fico agradavelmente surpreso; uma canção longa, suave, de letra simples e instrumental tranquilo (meu tipo favorito). Imediatamente me apaixono pela música e chego a escutar ela mais de uma vez, porém percebo algo... estranho.

    A música é uma balada romântica simples, sobre um eu lírico que canta o amor que sente por um parceiro de dança que lhe deu uma experiência única, em um claro subtexto amoroso. Ou pelo menos é o que eu pensei. Porque veja, apesar de eu escutar músicas seculares diariamente, já faz algumas semanas que eu uso meu Spotify para escutar quase que exclusivamente músicas cristãs, e como consequência, esta já é a terceira semana consecutiva em que minha playlist Descobertas da Semana me oferece exclusivamente músicas cristãs. Isso me deixa com uma pulga atrás da orelha que me leva a averiguar o cantor da canção que tanto me encantou, e me surpreendi: o rapaz, Rafael Faleiro, não só é cristão, como também é ministro de adoração na Igreja Internacional da Reconciliação em Brasília e membro de um grupo de produção de conteúdo cristão chamado Deeper. (E segundo a bio do Instagram ele é médico, porque ninguém nunca faz só uma coisa maneira na vida, hahahah).

    "Tá, Miguel, mas e daí? Você tem problema com o sujeito?"

    Aí que tá, é justamente o contrário. O rapaz é muito talentoso, fez umas músicas muito boas e não parece dar um testemunho ruim como cristão. O que me incomodou foi que a música dele reacendeu em mim um pensamento que eu já tinha faz um tempo.

    Pensa comigo, houve uma época em que música sertaneja era fortemente marcada por uma identidade meio bucólica. O sujeito tá cantando sobre o chifre que ele levou da esposa? Tá, mas ele provavelmente o faz com chapéu de vaqueiro na cabeça enquanto monta num cavalo. Mas recentemente, apesar das releituras super criativas que artistas como o Mano Walter em Não deixo não e Léo e Rafael em Os meninos da pecuária fizeram, esse tom bucólico foi bem deixado de lado com o advento do sertanejo universitário e os cantores jovens que falam de balada (tô de olho em você, Gusttavo Lima). Isso não precisa ser bom nem ruim, mas fato é que essa progressão nos mostra como o contexto de consumo e produção dessas músicas já não é mais o mesmo que já foi no passado.

    Certo, agora me acompanhe voltando um pouco pro passado. Houve uma época em que o povo de Israel fez um templo, liderados por Salomão, que seria um lugar dedicado a adorar Jeová. O templo era lindo, todas as nações e religiões que o viam se admiravam do que aquele Deus fez no meio de Seu povo... mas como tudo na história, nós encontramos uma forma de estragar o que Deus fez. Não sei exatamente como foi o processo, mas chuto com certa confiança que se iniciou com a normalização de cultos pagãos que começou após a divisão do reino, com os habitantes do reino do norte isolados do templo do Senhor. Eventualmente, o paganismo entre eles foi se normalizando e se espalhando também para o reino do sul, e imagino que eventualmente começaram a ocorrer diálogos mais ou menos assim:

    "Ei, sacerdote Jorge, por que nós não podemos adorar a Baal aqui no templo que Salomão fez? Os profetas de Baal não se importam muito de ter adoradores de Jeová no meio deles, então por que nós não podemos receber eles no nosso meio?"

    "Aí, Jorginho, qual o problema de ter uma imagem de Astarote aqui? Já tem vários postes nas ruas, o que teria de errado em pôr um aqui também? Poxa, não é um lugar de adoração?"

    Fato é que, eventualmente, o povo não estava só adorando deuses pagãos, ele estava adorando esses deuses no templo que havia sido contruído exclusivamente para Jeová, e eventualmente aquele ambiente perdeu todo o sentido e contexto de adoração que lhe dava sua identidade e se tornou apenas mais um lugar. Um lugar em que pessoas se reuniam, um lugar em que pessoas cantavam, um lugar em que pessoas se emocionavam, mas não deixava de ser apenas um lugar sem Deus. E eu não estou exagerando, no tempo de Josias haviam prostitutas cultuais que ofereciam serviços dentro do templo de Jeová. Meio cara de pau, né? Só um pouquinho.

    Olhando pra Israel e pra música sertaneja, eu não consigo deixar de imaginar se chegará o dia em que nossas igrejas estarão cheias de pessoas cantando canções que não falem explicitamente de Cristo e que possuam subtextos cristãos cada vez mais sutis. Eu sinceramente imagino se um dia nós teremos igrejas em que pessoas vão sem o intuito de adorar a Deus, mas simplesmente para ter alguns momentos bons. Nos tempos de Josias, o templo havia se tornado um antro de prostituição; será impossível que em nossos tempos os templos se tornem apenas ambientes de música ao vivo?

    E, por favor, entenda, eu não estou tentando ser o cara chato, o gatekeeper do rolê que fala que toda música que não fale de Jesus explicitamente é do capeta. Afinal, minha playlist de J-Rock não me deixa mentir, hahahaha. Pra esclarecer as coisas, eu gostaria de dar alguns exemplos.

    Há uma banda chamada Quarto Fechado, cujas músicas minha irmã escutava muito quando eu era pré-adolescente, e eu escutava por tabela. Eu gostava muito da musicalidade das canções deles, a ponto de uma certa música ficar grudada na minha mente por anos sem eu nunca mais escutar ela inteira. Um dia, já com 20 anos, eu decidi procurar por aquela música que escutei anos antes e me surpreendi.

Vem curar a minha insensatezNos teus braços repousar 
Meu despedaçado coraçãoVem quebrar o que restouJá sinto os cacos pelo chão
Desse orgulhoso coração
 
    Esse é o refrão que grudou na minha mente por anos, da música Meu Barco, do primeiro EP da banda. Agora dá uma olhada na canção Queda e colisão, do segundo álbum deles: 
 
Quanto mais eu te dou
Mais você quer pra si
Quanto mais eu te peço
Mais tu foges de mim
E no mais eu te digo
Que a morte não é o fim
Um viva à liberdade, então
 
    É. Eu me liguei que tinha coisa aí, um subtexto cristão nada sutil. Fui pesquisar o background da banda e que surpresa, tem membros cristãos no meio - a banda começou com dois caras que se encontraram num show da Oficina G3 e parte da razão do nome dela vem de Mateus 6.6. E o que mais me surpreende é que eles não se vendem como uma banda cristã, mas ainda assim não conseguem deixar de vazar um pouco dessa identidade nas letras. Até porque, pelo amor de Deus, quero ver alguém me dizer que não tem nada de cristão nessa porcaria:

O coração é emoção
Estrada para a perdição
Oh! Deus do tempo e da razão
Me livra dessa condição
 
    E eu acho lindo que existam bandas e canções assim no mundo. Imagina que daora é  tu chegar num amigo seu que não tem muito contato com cristianismo e lançar uma letra dessas pra dar uma amaciada na recepção dele.  Essas canções têm sim muito valor, assim como bandas como Flyleaf, Skillet, Thousand Foot Krutch, e outras que me surpreenderam quando eu descobri que eram cristãs. Mas sendo sincero, eu nunca tocaria nenhuma dessas dentro de uma igreja. Eu já me escandalizo quando tocam Dias de Guerra, da Valesca Mayssa, na igreja, já que a música não fala explicitamente de Cristo, então imagina essas. Repito, são músicas de muita qualidade e valor, mas tem hora e lugar pra tudo.
    Existe um fenômeno bem bizarro que eu vejo na Assembléia de Deus, que é o de pessoas que amam mais a adoração em si do que adorar, e não acho que se limite a ela. Cabe sempre dar aquela avaliada no que nós vamos fazer dentro do templo, porque nós somos sim um povo inclinado para a idolatria e não podemos nos esquecer disso.
    No mais, eu sigo ouvindo músicas seculares, sigo ouvindo músicas com subtexto cristão e sigo orando para que a adoração permaneça exclusiva a Deus em nossas igrejas. E também tenho certeza de que vou tocar Dance Comigo, do Rafael Faleiro, se eu me casar um dia. Música linda da desgraça.

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